segunda-feira, julho 08, 2013

Fantasia - Capítulo 3

Capítulo 3 – De Carne e Osso
O Sábado amanheceu com aquele calor úmido, típico do verão japonês. Aki chegou a tempo de filar o almoço que Keiko havia preparado e as duas comeram juntas, assistindo a um seriado na TV. Finalmente, quando Keiko voltou da cozinha trazendo a sobremesa, a amiga tocou no assunto da noite anterior.
Ela contou-lhe que Ryo não ficou chateado quando lhe explicou a situação e que, no fim da noite, ele acabou saindo com uma turista australiana. Contou-lhe também, que Akira havia oficializado o namoro e que estavam programando uma viagem a dois nas férias.
A sala caiu no silêncio; quebrado apenas pelo som agudo dos talheres de metal tocando nas taças de vidro enquanto comiam. Aki tinha o olhar vago e o rosto pensativo, e Keiko perguntou se a amiga não estava feliz com a viagem.
– Estou! Claro que estou! – ela respondeu com um sorriso – É que... na verdade não é comigo que estou preocupada... É com você Kei-chan. Eu decidi que vou fazer minha última tentativa pra te ajudar.
Keiko engasgou. Imaginava que depois do que havia acontecido na boate, a amiga desistiria de pensar em seu caso.
– Aki, tenho medo das suas tentativas; eu realmente desisti de tentar mudar essa minha vida. – Mas a curiosidade estava falando alto naquele momento, então perguntou: - Só para saber... que idéia maluca você teve agora?
A morena deixou escapar um sorrisinho e disse em tom conspiratório:
– Eu descobri um templo fabuloso que trata de assuntos amorosos – começou ela, tentando soar o mais natural possível; por mais absurda que a idéia pudesse parecer.
Keiko levou algum tempo para assimilar o que Aki estava dizendo.
"Templo?"
Quando o significado da palavra, finalmente, fez sentindo em sua cabeça, ela olhou horrorizada para a amiga. Esperava qualquer coisa dela; mas aquilo já estava passando dos limites.
– Aki-chan, vamos parando por aí...
– Keiko, não custa nada tentar! – interrompeu a outra, implorando.
– Ah, custa sim! Custa um bocado de Yens; não que isso tenha importância pra mim; mas me custa apelar para coisas que não me deixam confortável! – disse, exasperada.
– Keiko... – Aki forçou seu melhor tom de persuasão – Se for só pelo dinheiro eu pago. Por favor...
– Não é  pelo dinheiro... Você sabe que eu não acredito nessas coisas!
– Mas quem te garante que nunca funcionou? – Aki tentava parecer convincente.
A ruiva quedou-se quieta por um tempo, fitando o vazio.
– Deus do céu, eu não acredito que eu vou concordar com sua loucura.
– É isso aí, garota! – comemorou Aki, quase pulando do sofá – Marquei uma hora pra você hoje à noite.
– Como é? Você já...
– Ora – cortou a amiga – eu sabia que você não ia resistir.
Keiko apanhou uma almofada e jogou em Aki, sorrindo do jeito meio louco de sua amiga. Ela a conhecia como uma irmã; era inegável.
– O que eu faria sem você, Aki?
A moça sorriu e estirou-se no sofá, brincando com o guizo de Shippo que acabava de subir em seu colo.
-x-x-x-x-
– Aki, eu vou à padaria, você quer vir comigo? – o relógio no aparelho de DVD marcava “6:30 pm” e Keiko terminava de fechar seu notebook. Estivera trabalhando no seu projeto durante toda a tarde, em companhia da amiga que lia um dos volumes de Samurai X.
– É, eu vou sim. Vai ser bom esticar as pernas – disse ela fechando o mangá e colocando-o sobre a mesa de centro.
A padaria ficava a duas quadras do seu prédio, num bairro tranqüilo de Tóquio. Algumas árvores plantadas ao longo do caminho davam um frescor à noite quente que se iniciava, e enchiam o lugar de um verde alegre, mesclado com o colorido das flores. As duas caminharam a passos lentos, aproveitando a brisa noturna.
Finalmente, chegaram ao estabelecimento; um lugar com aspecto agradável, lotado de prateleiras de vidro e bambu, e cheirando a rosquinhas doces. Keiko se aproximou do balcão e fez sinal para um jovem de cabelos negros em forma de cuia.
– Boa noite, Kodi – ela cumprimentou jovialmente, olhando a vitrine de pães.
– Bo-b-oa no-noite, Keiko-chan.
Aki olhou surpresa para o rapaz, que gaguejava enquanto torcia uma toalha branca nas mãos. Os olhos dele dedicavam tamanha atenção à sua amiga ruiva, que ela podia jurar que o rapaz a adorava como uma musa intocável em seu pedestal reluzente.
– Bem – Keiko suspirou depois de algum tempo, desviando sua atenção da vitrine e encarando o rapaz – o de sempre, então.
Kodi sumiu por uma porta e voltou logo depois, carregando um embrulho fumegante de papel pardo.
– Q-quentinhos co-c-como você go-gosta – ele sorriu.
– Muito obrigada, Kodi! – Ela sorriu de volta. – Até mais! – Acenou e foi para o caixa.
Quando pisaram os pés fora da padaria, Aki abordou-a.
– Keiko, sua dissimulada, – disse ela em tom zombeteiro – você fisgou o coração do rapaz!
– Oh, não fisguei nada. – Keiko protestou. - O Kodi é ingênuo, só isso.
– Meu Deus, Keiko, você reparou no jeito que ele te olha?
– Aki, eu já te falei: o Kodi é só um adolescente! Ele olha daquele jeito para todas as mulheres. Já ouviu falar em puberdade?
– Adolescente. Sei... Com aquela cara?
– Aki!
A morena levantou os braços em sinal de derrota e sorriu.
– Tá bom, parei!
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– Você pegou a bolsa? – perguntou Aki, em pé na porta da sala.
– Peguei, só falta achar as chaves do carro... – Keiko disse enquanto vasculhava debaixo das almofadas – Achei, vamos.
Aki havia lhe dito que o templo não ficava longe; mas demoraram 40 minutos para chegar lá. Keiko resmungou o caminho inteiro, inconformada com as loucuras em que a amiga estava lhe metendo.
– Eu ainda nem sei onde estava com a cabeça quando concordei com essa sandice – crispou os lábios, parando o carro num das vagas de estacionamento na entrada do templo.
– Se você quiser voltar, por mim tudo bem. – Aki chiou. – Mas nós nunca vamos saber se os trabalhos dessa sacerdotisa funcionam mesmo, ou não.
Keiko estreitou os olhos na direção da amiga que sorriu e disse:
– Vamos, a Miko está esperando.
Saíram do carro e Keiko observou logo que o templo era imenso. Uma porta de madeira marcava a divisão entre o interior misterioso do lugar e o lado de fora. O hall de entrada tinha uma abertura no teto e uma piscina logo abaixo, onde patos nadavam tranqüilamente. Keiko estava nervosa, mas não pôde deixar de apreciar a beleza do local e sentir seu aroma exótico. Aki abordou um homem de idade avançada, com cara de monge, e perguntou para qual a sala deveriam ir.
O homem apontou para a última porta à direita e se retirou, carregando um ramalhete de ervas. A sala estava destrancada e elas entraram receosas. Uma mulher de rosto marcado pelo tempo, que se encontrava no centro da sala, sorriu e acenou para que entrassem e sentassem nas almofadas espalhadas pelo chão. A mesinha em que estava acomodada era baixa, cheia de pedras e um grosso livro estava colocado bem no centro. Keiko notou símbolos estranhos gravados na toalha que forrava o pequeno altar.
Finalmente, quando as duas já estavam devidamente acomodadas, a Miko perguntou com sua voz rouca:
– Qual das duas é a consulente?
Keiko não fazia a mínima idéia do que significava "consulente"; mas Aki parecia saber, porque apontou para a amiga sentada ao seu lado. A sacerdotisa olhou atentamente para a jovem ruiva, e ela sentiu-se incomodada, como se aquela mulher estivesse despindo-a com o olhar.
– Hum... – Começou ela, olhando para Aki. – Eu preciso ficar a sós com a moça, se você não se importa.
– Claro, eu... – Aki lançou um olhar interrogativo para Keiko. – Eu vou te esperar lá fora, tudo bem?
– Tudo. – Respondeu ela; meio incerta se realmente queria ficar sozinha com a estranha.
Quando a jovem saiu, fechando a porta atrás de si, a velha tossiu, pegou a mão de Keiko e olhou sua palma.
– Hum... muito interessante o seu caso. – Disse ela. – Os seres por detrás do véu haviam me dado alguns sinais, mas eu não conseguia compreendê-los; mas agora que você está aqui, diante de mim, eu entendo tudo.
"Véu? Que véu?" – Keiko pensou, olhando incerta para o fundo da sala; mas não conseguiu avistar nenhum véu. – "Do que esta mulher está falando?"
– Seu caso é bem complicado, minha filha. Amar alguém imaginário é pedir para sofrer... – A velha parou de falar para tossir e continuou – Você o ama de verdade?
Ela hesitou em responder, mas pensou que seria melhor ser sincera. Não estava gostando do modo como a mulher lhe encarava e sentia-se totalmente exposta diante dela, como se os olhos da sacerdotisa pudessem ver além do seu corpo e enxergassem sua alma.
Respondeu a pergunta da Miko acenando positivamente com a cabeça, atordoada demais para pronunciar qualquer palavra.
– Muito bem... Eu já preparei os ritos que vão te ajudar; – começou a Miko - mas veja: eu estou fazendo isso não por compaixão ou piedade. Também não faria por riquezas. O que estou prestes a fazer é um ritual muito antigo, que vai consumir muita energia; tanto minha quanto sua. Mas estou em dívida com o cosmos e o seu caso, por ser um dos grandes, quitará tudo o que eu devo – ela sorriu em meio à tosse prolongada que se seguiu.
"Cosmos?!" – Keiko estranhamente lembrou-se de um santuário grego e de homens vestidos com armaduras, cujos nomes eram os mesmos das constelações; mas baniu a imagem de sua cabeça, sentindo-se terrivelmente mal por não levar o momento a sério. Aki tinha feito esforços para lhe ajudar e ela não estava colaborando. – "Eu vou levar isso a sério. Em gratidão à sua amizade, Aki."
A Miko levantou-se e pediu que esperasse, desaparecendo por uma portinha no fundo da sala. Keiko teve tempo para olhar melhor o lugar e notou que o cômodo não era grande. Poucas velas, penduradas em castiçais na parede, iluminavam fracamente o ambiente e muitos incensos e ervas aromatizavam o lugar. Seu ceticismo estava fortemente abalado diante do clima misterioso e exótico do lugar.
A velha sacerdotisa tinha mencionado o seu amor platônico por um homem que existia, apenas, em um mundo imaginário. Será que Aki havia dito algo para ela antes de trazer Keiko ali? Se isso fosse algum tipo de brincadeira, ou se a amiga tivesse colaborado com aquele charlatanismo, Keiko ficaria realmente chateada.
Minutos depois, a sacerdotisa voltou com um bule e uma xícara, e ofereceu um pouco de chá a Keiko.
– Não, obrigada. – Disse a jovem e a velha sorriu.
– Não é opcional. Você deve beber isso pois preciso ler sua história no pó do chá, querida... – disse empurrando a xícara para ela – Beba tudo de uma só vez e deixe um pouco junto com as folhas e o pó.
Por um breve momento, a mente de Keiko devaneou, lembrando-se de uma certa aula de Adivinhação em uma certa escola de magia e bruxaria. Forçando-se a se manter concentrada na realidade, fez o que lhe foi pedido e entregou a xícara à velha.
– Hum... – Disse a Miko após analisar o conteúdo do recipiente. – Você mora sozinha, não é? E eu vejo um gato aqui. Você tem um gato de estimação?
Ela respondeu apenas balançando a cabeça positivamente; mas ainda não estava surpresa. Aquela informação não era novidade para ninguém. Qualquer um poderia ter adivinhado aquilo, era só olhar os pêlos de Shippo que estavam presos em sua blusa de malha preta. Isso sem contar a hipótese de Aki ter contado algo à velha.
Girando a xícara um pouco mais, a Miko acrescentou:
- Não dê tanta pizza de camarão a ele, querida. Ele vai virar um gato obeso e doente.
Nesse momento Keiko ficou realmente assustada. Somente ela sabia que Shippo adorava pizza de camarão. Não tinha como Aki ter dito aquilo à velha Miko. Suas suspeitas sobre a mulher ser uma impostora tinham acabado de se dissipar.
– Oh... – a velha continuou com um tom piedoso e tossiu – você perdeu seus pais no final da sua adolescência, não foi? – A ruiva sentiu o sangue gelar e todo o resquício de ceticismo a abandonou. Aquela mulher estava realmente lendo sua história no pó do chá. – Ah! – exclamou a sacerdotisa, parecendo muito encantada – Eu vejo ervas em sua vida! Muitas ervas! Por acaso você trabalha com elas?
Keiko mais uma vez fez um sinal positivo com a cabeça, ainda muito chocada com tudo aquilo para dizer qualquer coisa que fosse. A Miko girou a xícara e examinou-a mais uma vez. Sua expressão ficou séria de repente e ela não falou nada, nem fez qualquer comentário. Keiko se perguntou o quê ela estaria vendo.
– Você o ama muito não é, menina?
– Amo... – ela respondeu quase num sussurro; a resposta saindo sem querer.
– Você tem um coração bom – disse a mulher – e eu vejo que você ainda vai sofrer muito em sua vida; mas o presente que eu vou lhe dar aliviará sua dor e quitará a minha dívida com o cosmo. Então será bom para nós duas. – Ela puxou, de debaixo da mesinha, uma bacia de cerâmica cheia de brasas e tirou um saquinho de ervas de dentro das vestes.
Keiko sentiu-se confusa com as palavras da Miko. Sofrer muito? Não estava gostando nem um pouco daquilo.
A mulher desatou sete nós que fechavam o saquinho e retirou três folhas de uma erva avermelhada. Apesar de ser botânica, Keiko não conseguiu identificar a qual planta aquelas folhas pertenciam. A velha jogou-as na brasa e elas queimaram lentamente, exalando um cheiro forte e adocicado que deixou Keiko com náuseas.
– Levante-se. – Disse, a Miko para Keiko, enquanto ela mesma se punha de pé. Ergueu diante de si a mão direita e fez um gesto largo dizendo – Eu abro o véu...
A ruiva sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo; àquela altura, o perfume da erva queimada estava bagunçando seus sentidos. O mundo parecia girar sob seus pés e ela teve a impressão de ouvir vozes, muitas vozes, sussurrando palavras desconhecidas no seu ouvido, misturando-se com a voz da Miko que dizia, sem parar, palavras desconhecidas.
Seus olhos se fecharam sem o seu consentimento e ela tentou se equilibrar. Sem aviso, a imagem de um homem mascarado tornou-se nítida em sua mente; o seu rosto era tudo o que ela conseguia ver. Sentiu que seu corpo estava leve. O mascarado parecia tão próximo, tão real... Tentou tocá-lo, mas suas mãos encontraram o vazio. Os odores da sala abafada tornaram-se mais intensos, suas pernas finalmente cederam e ela não conseguiu pensar em mais nada.
-x-x-x-x-
Aki ajudou-a a se deitar e sentou-se do seu lado.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Estou. – A voz de Keiko saiu fraca e débil.
Estavam no apartamento de Keiko. Depois do desmaio, Aki trouxe a amiga de volta para casa; precisou da ajuda do porteiro para subir com ela no elevador e carregá-la até a cama.
– Me desculpe, Kei-chan. Eu não podia imaginar que chegaria a esse ponto...
– Não se preocupe, Aki. – Keiko respondeu docemente; sabia que a amiga não tinha culpa. - Eu sei que suas intenções eram as melhores.
A moça suspirou.
– Ela, ao menos, te disse alguma coisa útil?
– Bem... – suspiro – ela leu o meu passado e disse que eu ia sofrer mais no futuro. – Sorriu molemente ao ver a cara de espanto da amiga – Mas ela falou coisas do tipo: "vou te dar um presente pra aliviar sua dor" e "com isso vou quitar a minha dívida com o cosmos".
– Cosmos? – Aki fez uma careta. – Bem, aliviar a sua dor, realmente ela aliviou, fazendo você apagar daquele jeito.
Keiko sorriu. Era bom contar com o bom humor de Aki nessas horas.
- Eu devia processar aquela velha. Se ela queria puxar um baseado, que fizesse sozinha e deixasse você fora disso. – A morena disse em tom de indignação.
Keiko sorriu mais uma vez e achou melhor não contar à amiga sobre as vozes que tinha ouvido, cogitando que pudesse ter sido efeito daquela erva desconhecida que a velha a tinha feito inalar. Finalmente, depois de um período em silêncio, Aki levantou e pegou a bolsa.
– Hora de ir. – Acariciou os cabelos de Keiko e sorriu maternalmente. – Você precisa de mais alguma coisa?
– Não, eu estou bem, juro. Só preciso de uma boa noite de sono.
– Ok, então. Eu vou trancar seu apartamento e levar as chaves. Amanhã cedo passo aqui e te devolvo elas. Qualquer coisa é só ligar! Vou estar com o celular colado no ouvido!
Ela acenou, apagou a luz e encostou a porta do quarto. Keiko ouviu-a sair e trancar o apartamento. O pôster pregado na porta, iluminado pela claridade azulada que entrava da janela, chamou sua atenção e ela o fitou. Sua visão saiu de foco enquanto tentava enxergar a imagem retratada no pôster. Esfregou os olhos e olhou novamente. Ela continuava embaçada e Keiko se perguntou se continuaria com a visão turva por muito tempo.
Ajeitou o travesseiro sob a cabeça e virou-se para dormir. Amanhã seria domingo e ela teria um dia inteiro para relaxar e se recuperar.
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Keiko não teve uma noite tão tranqüila quanto esperava. A cada hora, acordava assustada, ouvindo as vozes da sala da Miko em seus sonhos. Quando as horas da madrugada já estavam adiantadas e a escuridão se dissipava, ela teve o pior sobressalto da noite. Acordou suada, com a imagem do rosto mascarado gravado em sua mente.
Havia sonhado com uma névoa que a envolvia, enquanto estava sentada na cama, fitando o pôster da porta. De repente, a névoa enroscava-se na figura do pôster, fazendo-a sumir lentamente. Ela gritava para que deixassem o seu jovem mascarado em paz, mas a névoa o levava embora e deixava apenas o vazio em seu lugar.
Levantou-se cambaleante, atordoada com o sonho, tateando a parede em busca do interruptor. Ligou a luz e a claridade atingiu suas pupilas como facas afiadas. Fechou os olhos quase que completamente, deixando-os abertos apenas o suficiente para se certificar de que o seu pôster continuava intacto.
E estava.
A figura encontrava-se ainda desfocada, mas como todo o quarto também estava, ela apenas desligou a luz e voltou para a cama. Fechou os olhos; o sono pesado finalmente se apoderando de seu corpo. Já estava quase dormindo quando sentiu, mais uma vez, o cheiro das ervas da Miko. Por um breve momento inalou o aroma adocicado, questionando-se, em sua sonolência, de onde estava vindo o perfume. Mas logo ele se dissipou e ela deixou-se vencer pelo cansaço.
Quando o dia finalmente nasceu e os raios de sol atingiram-lhe em cheio no rosto, ela cobriu-se com o travesseiro e resmungou. Virou-se para o outro lado, e pensou em ficar mais um tempinho na cama, compensando as horas em que não conseguira dormir. Esperou que Shippo viesse acordá-la, pulando em suas costas como sempre fazia, mas o gato não deu nenhum sinal de sequer ter entrado no quarto.
Ouviu seu guizo balançar em algum lugar da sala e então tudo voltou a ficar quieto.
– Shippo? – Chamou, mas não obteve nenhum sinal em resposta. Achou estranho. Ele sempre vinha correndo quando o chamava. – A porta está entreaberta, seu tolinho. – Murmurou.
Apurou os ouvidos a fim de escutar seu guizo mais uma vez, mas a casa continuava silenciosa. Franziu as sobrancelhas e chutou as cobertas para longe.
– Cadê aquele gato preguiçoso? Shippo! – chamou mais uma vez.
Olhou debaixo da cama, mas ele não estava lá. Pelo menos sua visão tinha voltado ao normal.
Levantou-se, vestiu um roupão e estava tão intrigada com o paradeiro do gato, que caminhou olhando para o chão, tentando enxergá-lo escondido em algum canto. Assim, passou direto pela porta, sem ao menos olhar o postar.
Caminhou sonolenta até o banheiro; lavou o rosto, sentindo o sono abandoná-la aos poucos. Espreguiçou-se, escovou os dentes e foi até a cozinha, decidida a verificar se o bichano não tinha morrido afogado no pratinho de leite. Mas o gato não estava lá.
Finalmente, Shippo miou outra vez e o som vinha da sala. Keiko atravessou o corredor e abriu a porta, já se preparando para ralhar com ele.
– Seu gato fofo, safado! – Disse, enquanto dava uma olhadela rápida na sala à procura dele. – Apareça!
Tudo aconteceu muito rápido. Pelo canto dos olhos, percebeu um vulto se movimentar às suas costas. Achou que era o gato, mas antes mesmo de se virar para conferir, viu que Shippo saía de debaixo das almofadas do sofá, bem à sua frente.
Keiko congelou. Se Shippo estava no sofá, o que teria sido aquele vulto? Foi então que uma mão firme lhe puxou e ela sentiu suas costas se chocarem contra algo sólido – o peito de alguém. Outra mão tapou sua boca, de modo que ela não pudesse gritar. A essa altura a adrenalina corria solta em suas veias. Seu coração batia tão forte, que ela podia ouvi-lo martelando em seus ouvidos.
O desespero e o pânico enviavam apenas uma mensagem ao seu cérebro: “você está sendo assaltada”. Ela, instintivamente, tentou se desvencilhar do abraço de seu algoz, mas ele era muito forte e a mantinha presa firmemente junto ao seu corpo. Finalmente, depois de um tempo, suas forças foram minando, e ela parou de se debater. Quando isso aconteceu, viu pelo canto do olho que o ladrão aproximava o rosto do seu. A máscara que lhe cobria a face chegou a roçar na orelha direita de Keiko.
- Acene com a cabeça se você entende o que eu digo. – Ele disse com uma voz grave e profunda.
Um arrepio percorreu o corpo de Keiko. Ela conhecia aquela voz, mas o pânico não a deixava pensar direito e ela não conseguiu identificar de quem era. Temendo que ele a machucasse caso não respondesse logo, Keiko acenou positivamente com a cabeça.
- Muito bem, – ele continuou – preste atenção no que eu vou dizer, pois não vou repetir. Eu vou tirar a mão que cobre sua boca, mas se você fizer qualquer som sem a minha autorização, você morre. Vou lhe fazer algumas perguntas e quero respostas diretas. Fui claro?
Ela balançou a cabeça mais uma vez e sentiu a pressão da mão nos seus lábios diminuir lentamente, até se afastar do seu rosto. Mal teve tempo de sentir alívio, pois uma espécie de lâmina foi colocada contra o seu pescoço.
- Quem é você? – Ele perguntou.
- Keiko Watanabe. – Sua voz era pouco mais do que um sussurro.
- Para quem você trabalha?
Keiko achou aquela pergunta inusitada para um assalto. Será que estava sendoseqüestrada?
- Trabalho no Instituto de Pesquisas Fitoterápicas.
- Qual o seu posto?
“Posto?” – Keiko estranhou a pergunta. – “Não seria minha função?” – pensou.
- Sou a botânica-chefe do meu laboratório. – Respondeu, cada vez mais preocupada com o rumo que as coisas estavam tomando.
- De que forma você está envolvida na invocação que me trouxe até aqui?
“Invocação?!” Levou algum tempo para Keiko processar aquela palavra. Pessoas usavam o termo invocação diversas vezes no seu anime favorito, mas na vida real?
A mente de Keiko deu um estalo. Pensar em seu anime favorito, imediatamente, fez com que seu cérebro trouxesse à tona uma informação registrada alguns minutos antes: a suspeita de que conhecia a voz do ladrão. Agora ela lembrava!
“Kakashi?!” – ela pensou incrédula. Não podia ser ele, afinal, ele era um personagem fictício! Ou o ladrão tinha uma voz muito parecida com a dele, ou ela estava sendo assaltada pelo dublador de Kakashi no anime! Aquele pensamento era tão absurdo que beirava a insanidade.
Devia ter demorado muito perdida em seus pensamentos, pois o ladrão aproximou o rosto do dela ainda mais e disse em um tom ameaçador:
- É melhor responder logo...
Alguns fios do cabelo dele roçaram sua bochecha e Keiko notou que eram prateados.
“Cabelos prateados... voz do Kakashi... mas quem é ele?!” – Ela pensou atordoada. Num impulso, virou o rosto para ver o homem.
Uma máscara cobria seu rosto do nariz para baixo; seus cabelos cinzas pendiam sobre uma bandana amarrada em sua testa. O tecido estava amarrado de forma que apenas um dos olhos ficava visível. A bandana possuía uma placa de metal no meio e um símbolo estava gravado nela: uma espiral que se desenrolava até tomar a forma de uma espécie de folha. Keiko conhecia aquele símbolo.
Era o símbolo de Konoha.
Mais do que o símbolo, Keiko também conhecia aquele rosto. Era o rosto do homem que amava, o rosto que ela imaginou tantas vezes ao seu lado. Era o rosto de Kakashi.
Na mesma hora, Keiko lembrou-se da Miko. Recordou as visões que tivera do ninja mascarado em seu devaneio, sob o efeito das ervas na noite passada. E mais: a voz da Miko veio clara à sua mente: “o presente que eu vou lhe dar aliviará sua dor e quitará a minha dívida com o cosmo”. Agora Keiko entendia o que aquilo queria dizer; era completamente absurdo. A constatação lançou uma onda gelada por seu corpo. Imediatamente, sentiu-se tonta e o olhar penetrante do shinobi foi a última coisa que ela viu antes de desmaiar.
(Continua...)

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